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É certo criminalizar a defesa da saúde?

É certo criminalizar a defesa da saúde?

Se você está inserido no universo da cannabis, já ouviu falar de Emílio Figueiredo. Se não, essa é uma boa hora. O advogado de 41 anos, há mais de 10 envolvido com Direito e cannabis, está no centro da luta pelo direito de acesso dos brasileiros à planta e seus extratos, especialmente quando se trata do uso medicinal.

No currículo de Emílio também está o apoio jurídico e a participação na famosa Marcha da Maconha carioca , e a criação da Reforma (Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas), uma associação civil sem fins lucrativos que, entre outras atividades, reúne, forma e oferece suporte a advogados sensíveis às questões ligadas à política de drogas.

Ainda assim, a história há de se lembrar de sua figura por ter sido o responsável por massificar a utilização do recurso do Habeas Corpus (HC) para solucionar o problema imediato e urgente de famílias que autocultivam a cannabis para produzir a partir dela seu medicamento. Vale explicar: uma vez que o valor dos remédios importados (e também do nacional, recentemente lançado no mercado) é inviável para a grande parte da população brasileira, o cultivo doméstico acaba sendo a única e melhor opção.

“A ideia do HC veio originalmente do meu colega Ricardo Nemer. Até março de 2020, foram realizadas 64 ações deste tipo no Brasil. Destas, 35 foram conduzidas pela Reforma. Hoje devemos estar perto de 80 ações no Brasil, mas nem todas estão julgadas e houve derrotas – a última vez em que fiz a conta, somávamos 12 delas”, contou Figueiredo em entrevista exclusiva ao The Cannigma.

Há dez anos, quando a cannabis era absolutamente ilegal no Brasil, você já estava envolvido em sua defesa. Como assim?

Minhas primeiras atuações como advogado na área da cannabis foram na defesa de pessoas injustamente acusadas de tráfico ao cultivar cannabis em casa. Foram pegas pela polícia e consideradas “traficantes que fomentam o mercado ilícito”. Isso me fez começar a estudar a cannabis enquanto planta e substância para poder levar informação científica adequada para os processos judiciais.

Pelo Direito em si, essas pessoas estavam condenadas. Por isso fui estudar, acumular outros saberes, especialmente os que envolvem agronomia, farmácia, botânica. Assim absorvi conhecimentos que me permitem saber o quanto uma planta produz, quantas são necessárias para atender um consumidor mediano, se era realmente cannabis o que havia sido apreendido, se havia ali alguma substância proibida etc.

Você acompanhou pessoalmente a evolução da cannabis como medicamento no Brasil. Pode nos contar como as primeiras famílias brasileiras tiveram contato com o poder terapêutico da planta?

O momento em que minha história se cruza com a dessas famílias foi em 2013, quando fui procurado por um casal que queria entender quais as implicações jurídicas de adquirir canabidiol no exterior. Claro que havia o risco de esse ato ser considerado tráfico internacional. Mesmo assim, essa família correu o risco, experimentou e deu certo. A notícia correu rapidamente entre outras mães, as quais também começaram a trazê-lo para o Brasil para tratar seus filhos, os quais sofriam com o mesmo problema. Dessa forma se deu a consolidação da prática de importação do óleo de CBD.

Claro, tudo era feito clandestinamente – e um dia a Anvisa apreendeu uma dessas remessas. Essa história está contada em um documento incrível chamado Ilegal, a Vida não Espera.

“O amor de mãe é o grande ator dessa história.”

Você cita sempre “as mães” como personagens centrais na luta pelo direito de autocultivo da cannabis. Por quê?

Para mim, é visível que chegamos onde estamos, no universo da cannabis medicinal, em função das mulheres. Eu sou testemunha dessa história. Claro que há participação de toda a família – mas as mães sempre têm um papel preponderante. Nas reuniões de discussão sobre cultivo, eram as mães que compareciam. Também no momento de aprender com outros cultivadores a plantar e extrair o óleo, eram elas quem estavam à frente.

Interessante notar que sempre se criticou a pouca participação feminina no movimento ativista pela liberação da cannabis, que sempre foi muito conduzido pelos homens. E de 2013 para cá, com a chegada da cannabis medicinal, cresce não apenas a presença delas como também a conversa entre o movimento e a luta feminista. Existe uma grande sintonia entre os dois temas. Havia realmente a necessidade de uma perspectiva feminina e feminista para que pudéssemos fazer uma revolução social decente no Brasil e no mundo. E creio que o amor de mãe é o grande ator dessa história.

Emilio Figueiredo e Ricardo Nemer defendem o direito de famílias ao autocultivo da cannabis
Os advogados Emilio Figueiredo (à dir.) e Ricardo Nemer (à esq.): após vitória em processo de Habeas Corpus (arquivo pessoal)

Como o autocultivo entrou nessa história?

Naturalmente, a troca de informações levou ao contato entre essas mães e cultivadores domésticos. Eles diziam: “Vocês estão pagando um preço altíssimo para algo que podem produzir em casa”. Fora isso, havia dúvidas a respeito do produto industrializado, e surgiu um relatório que afirmava que foram encontrados nele metais pesados e outros contaminantes. Essa combinação fomentou o debate interno desse grupo a respeito de qual seria a melhor forma de acesso – a importação ou o cultivo.

Assim, esse período, entre 2014 e 2015, foi marcado pela disputa de ideias. Até que um grupo de mães, no fim de 2015, começou a cultivar para produzir o óleo para seus filhos – e com ele obtiveram resultados incríveis. A produção era artesanal, mas de forma alguma mambembe: elas contavam com suporte técnico de pessoas competentes, entre médicos e farmacêuticos, que checavam desde a forma de produção até o resultado obtido.

Em 2016, chegamos ao cultivo como prática consolidada no Brasil. Esse foi o cenário maduro que nos permitiu que, no fim daquele ano, fossem impetrados os primeiros quatro Habeas Corpus que protegiam o cultivo feito por essas famílias. Mas esta não foi nossa primeira opção jurídica.

Conte mais, por favor.

Para proteger as famílias cultivadoras, tentamos primeiramente dois tipos de ações: Alvará Judicial e Obrigação de Fazer.

O primeiro é uma ação sem a outra parte. É como se disséssemos para o juiz: “A legislação diz que o cultivo pode ser autorizado, mas ela em si não autoriza – então o senhor pode autorizar”. Ou seja, ele supriria essa omissão. Não funcionou.

Em seguida, pedimos a “obrigação de fazer”, com a qual, em linguagem simples, dizemos ao juiz: “Excelência, a lei diz que a União pode autorizar o cultivo da cannabis, mas não autoriza. Obrigue-a o senhor, então, a autorizar”. Ou seja, não é mais um pedido para o juiz autorizar, mas sim para que ele obrigue a União Federal a autorizar.

Essa ação também não deu certo para o caso do cultivo doméstico das famílias, mas funcionou um pouco mais para frente quando, em abril de 2017, alteramos o mesmo texto para a Abrace Esperança – e funcionou.  Até hoje, a Abrace é a única associação brasileira a ter recebido autorização definitiva para cultivar plantas ricas em CBD e THC para fins medicinais.

“O Habeas Corpus não autoriza alguém a cultivar – ele só diz que aquela pessoa, ao fazê-lo, não está cometendo um delito.”

O Habeas Corpus foi então a terceira tentativa?

Sim. Nessa época, meu colega Ricardo Nemer, um gênio, disse: “Emilio, pode parecer estranho para você, mas vamos precisar usar uma ação penal para garantir o direito à saúde. Ou seja, um Habeas Corpus para que a pessoa possa obter um tratamento médico adequado”. Essa tese, na verdade, já havia sido constituída entre nós em abstrato desde final de 2010. Mas só no final de 2016 começamos a ter casos maduros para aplicar essa tese. Esta é uma ação rápida, na qual você já leva ao juiz toda a documentação pronta. Não há discussão, detalhes a serem abordados – é sim ou não. Se é sim, ótimo. Se não, recorremos.

Importante deixar claro: o HC não é autorização de cultivo, mas sim uma decisão que determina que aquele cultivo em particular está sendo realizado em prol da saúde e que não pode ser considerado um fato criminoso. Assim, os cultivadores não podem ser presos e as plantas não podem ser apreendidas. Mas o HC não autoriza alguém a cultivar – ele só diz que aquela pessoa, ao fazê-lo, não está cometendo um delito.

Como é feita uma petição de Habeas Corpus para o autocultivo de cannabis?

Há uma série de providências. Nós tentamos fazer a tese jurídica o mais completa possível – cada uma delas tem no mínimo 35 laudas. E por quê? Porque o juiz precisa estar ciente de que estamos cercando a decisão por todas as frentes, seja da saúde, legislação regulatória e aspecto criminal. Não apenas a redação do advogado é importante como, também, os documentos que acompanham a petição inicial. Essa tática tem se mostrado boa: desde o fim de 2016, os advogados da Reforma obtiveram 34 decisões favoráveis em 35 pedidos.

Qual é o objetivo da Reforma e qual seu papel nela?

A Reforma foi criada para compartilhar informações jurídicas com as pessoas atendidas e facilitar o seu acesso à justiça. Nosso papel é também realizar ações de ativismo para mudar a política de drogas no Brasil, além de ajudar na formação interna de advogados. Atualmente somos 25 profissionais em nove Estados. Esse aspecto é muito importante – afinal, eu e o Ricardo estamos nesse campo há dez anos, mas há advogados que chegaram há pouco e precisam estar prontos para enfrentar qualquer pergunta difícil que um juiz possa fazer na hora de um processo.

Hoje enfrento o desafio de encontrar soluções para massificar os HC sem perder a segurança, o zelo e o controle. O HC não é uma aventura jurídica, é uma ação muito séria feita para ajudar quem precisa da cannabis como ferramenta terapêutica. Em breve, a Reforma vai lançar um curso para ensinar advogados a elaborar o HC. Nosso objetivo final é aumentar o volume de decisões favoráveis.

Qualquer pessoa pode solicitar um Habeas Corpus para o autocultivo de cannabis?

Não! Se alguém entrar no meu escritório e disser “quero tratar meu filho com cannabis”, eu vou perguntar: “Você já conversou com seu médico?”. Porque, antes de ter um advogado, você precisa ter um médico que vá prescrever, ou já tenha prescrito, o óleo de cannabis para seu caso.

O que normalmente acontece é que, depois de receber a prescrição, a família faz o orçamento de compra do produto – como sabe-se, bastante caro, pois depende de importação ou de insumos importados. Em seguida, sempre sob orientação médica, aprenderá a cultivar e produzir o óleo. E ele o testará para, depois, voltar ao médico e mostrar os resultados. A partir daí, o médico já não prescreve mais a cannabis, mas sim um laudo observacional – justamente o que eu preciso –, atestando algo como “segundo o relato do paciente ou do cuidador, noto que houve uma melhora significativa no quadro clínico através da utilização de óleo artesanal feito pela família, com resultados ‘x e y’, e julgo que o tratamento deve ser continuado”.

Também é importante anexar outros documentos. Há um professor impressionado com a melhora do paciente? Anexamos uma declaração. O fisioterapeuta e o fonoaudiólogo notaram algo? Eles produzem um laudo e incorporamos à petição.

Eu sou um cara supercético, mas vejo milagres resultantes do uso da cannabis todos os dias. Crianças que nunca falaram começarem a falar; que nunca andaram, começarem a andar.

Qual o nome escrito no Habeas Corpus que permite o autocultivo da cannabis – do paciente, da mãe…

O HC sai no nome das pessoas indicadas pelo advogado. Normalmente, indicamos todos os residentes na casa, para evitar que qualquer um esteja em risco mesmo que só um dos familiares use a planta.

“O autocultivo permite a produção de um produto análogo ao industrial, mas feito de forma bem elaborada, mais barata e sem riscos de abastecimento ou de flutuação do dólar.”

Quais as vantagens do autocultivo em relação à compra no exterior?

Muitas vezes, produz-se um produto análogo feito por meio de cultivo bem elaborado, mas muito mais barato e sem os riscos causados pelas flutuações do câmbio do dólar e da possibilidade de interrupção de abastecimento. Em termos de qualidade, o cultivador acompanha todo o ciclo de produção, da semente até a flor e a extração do óleo.

Quais orientações você dá à família que ganha o processo?

Em primeiro lugar, não ostentar o autocultivo publicamente: ele é algo íntimo, é você produzindo o seu próprio remédio. Não dê a terceiros, não forneça a outros de forma alguma. Vender, jamais! Mantenha sempre o contato com o médico e obtenha dele, periodicamente, um laudo atualizado.

Em que momento as pessoas não precisarão mais do HC para cultivar a cannabis?

Quando o Legislativo fizer uma lei dizendo que quem cultiva a cannabis em casa não pode ser considerado criminoso por ser um direito fundamental do homem cultivar o próprio remédio. Se depender de mim, essa lei deverá se aplicar a todos, sejam os que usam a cannabis com fins medicinais ou recreativos. Eu não vejo alguém que cultiva flores em casa como alguém que precisa ser preso.

É uma coisa de louco a gente prender florista, jardineiro. Mas é o que acontece. Desde o primeiro HC, eu disse para o meu colega Ricardo Nemer: “Daqui a 20 anos, vamos sentir vergonha por ter usado HC para garantir o autocultivo da maconha com fins de saúde.” Mas esse é o tempo em que vivemos.

Emílio Figueiredo é advogado graduado pela PUC-RJ (2004), com pós-graduação em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pelo Instituto de Economia da UFRJ. Em 2014, participou de curso sobre Reformas na Política de Drogas no Transnational Institute, em Amsterdã. Atualmente é mestrando do programa de pós-gradução em Justiça e Segurança, na perspectiva da Antropologia, da Universidade Federal Fluminense.

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